Senna eterno: quando o tricampeão só ‘sossegou’ ao superar jovens no kart
Imagine a cena: um tricampeão mundial da principal categoria de automobilismo, de folga, vai à pista para correr com jovens pilotos de kart, alguns que ele não conhece, a uma semana de um GP da temporada. Essa história aconteceu com Ayrton Senna e foi marcante para Luciano Burti, ex-Fórmula 1 que guarda com carinho o único encontro que teve com seu herói, o que permitiu conhecer o já famoso lado competitivo e perfeccionista, assim como o humano.
Aos 18 anos, Burti foi convidado para ir à famosa pista de kart na fazenda da família de Senna, na cidade de Tatuí, interior paulista. Só não esperava que o tricampeão da McLaren fosse aparecer e, muito menos, correr com ele e os outros jovens. Isso aconteceu em junho de 1993, a uma semana do GP do Canadá, e quase um ano antes da morte de Senna, em 1 de maio de 1994.
“A gente foi lá pra andar de kart, mas sem expectativa de conhecê-lo. De repente, o cara apareceu na pista. Apesar de já ser tricampeão mundial, ele deu umas voltas com a gente. E não estava virando no mesmo tempo. Acho que eu era o mais rápido da pista. Estávamos entre quatro ou seis, mas todo mundo andando muito parecido, e ele estava um pouco pior, o que é muito comum, porque a molecada de kart fica mais afiada”, relembra, em entrevista a O Dia.
Burti, que hoje é comentarista de automobilismo da Globo, então viu de perto o que Senna costumava fazer com seus mecânicos e carros quando não estava satisfeito: buscar fazer ajustes para melhorar o desempenho e ser o mais rápido. Mesmo que fosse numa brincadeira de kart.
“Ao invés de dar meia dúzia de voltinhas e ir embora, não. ‘Espera, não…troca o motor…, não, agora troca isso…’. Quer dizer, enquanto ele não andou mais rápido que a gente, o cara não sossegou. Precisou dar umas 30 voltas mais ou menos para Senna baixar o nosso tempo. E aí ele falou: ‘Agora chega. Não vamos mais ficar tomando tempo, vamos só correr’. E foi maravilhoso. Esquecemos quem ele era e ficamos disputando com o cara, sendo ultrapassados, ultrapassando, tocando roda com ele” recorda.
Ex-piloto de Fórmula 1, Luciano Burti vê Ayrton Senna como um heróiFabio Rocha/Globo/Divulgação
E não acabou só na pista. Senna ainda fez questão de almoçar com os jovens e conversar mais um pouco com eles, o que deixou ainda mais marcado para Burti, ao conhecer outro lado do piloto, além do que assistia pela TV.
“Essa história é para contar um pouco do valor que esse cara teve como referência pra mim. Já era herói e se tornou mais admirável ainda. Sem combinar deu certo. Era gente boa. Estava lá, almoçando com a gente e contando piada, aquelas coisas”.
Burti foi campeão no dia da morte de Senna
Menos de um ano depois daquele dia especial, Luciano Burti viveu outra experiência marcante e emocionalmente muito forte. No fatídico dia 1 de maio de 1994, o então piloto de kart seria campeão sul-americano pela primeira vez.
Antes da largada da bateria final, o acidente de Ayrton Senna já havia acontecido e se mostrava muito grave. O clima não era bom após o forte acidente na curva Tamburello, pelo GP de San Marino, levou dúvidas sobre a continuação do campeonato, que era disputado em Florianópolis.
“Cogitaram cancelar a prova, mas tinha argentino, uruguaio, colombiano, chileno que vieram de longe, não dava para não ter. Além disso, também decidimos manter a competição como uma forma de homenagem. Ganhei a corrida e o campeonato. Sou pai de dois filhos, os amores da minha vida, mas eu falo que foi o dia mais emocionante da minha vida. Lembro que larguei chorando, e não foi só eu. Foi um dia muito forte pra mim, então tem um significado mesmo”, conta.
‘Se hoje estou vivo é por causa de Senna’
A relação de admiração de Burti pelo tricampeão vai além de 1994 e tem também gratidão. O ex-piloto teve um gravíssimo acidente na Fórmula 1, no GP da Bélgica de 2001, e foi salvo graças à maior segurança dos carros, implementada pela categoria e pela FIA após a morte de Ayrton Senna.
Capacete de Luciano Burti ficou destruído após grave acidente no GP da Bélgica de 2001Arquivo pessoal
Ao tentar ultrapassar o irlandês Eddie Irvine, Burti, que estava na equipe Prost, perdeu o controle e bateu na parede de pneus a 270 km/h. O acidente foi tão forte que o capacete quebrou na parte de baixo.
“Eu quase morri, tive concussão e hemorragia cerebral. Infelizmente, no dia 1º de maio de 1994, eu perdi um herói, um ídolo, mas eu tenho certeza de que, se Senna não tivesse morrido, eu não teria sobrevivido ao meu acidente. Na época dele a segurança era muito aquém e só melhorou depois do que aconteceu. Melhoraram muito o nível de segurança do carro, da pista, etc”, afirma.
Ex-Fórmula 1, Luciano Burti recorda único encontro que teve com o seu herói, em 1993